Arquipélago dos lugares imaginários
A invenção das paisagens
Nessa terra alta não há como pôr à prova o caminhar. Não há
trilhas, nem clareiras, nem tampouco sendeiros que lhe escapem escondidos.
Suspensa, não é possível invadi-la, pisar, fincar bandeira. Ainda que os pés
solicitem o chão embaixo das solas, sua posse é indeclarável. Limites não foram
traçados, assim, não há mapas. Foram apagados o norte, as direções, todos os
pontos de orientação. O vento é o único estrangeiro. É por isso que o lugar
existe, mesmo que apenas como uma metáfora para o incalculável. Há uma forma de
tempo: descontínuo, entre tréguas longas, esticadas ecoando em breves
sobressaltos. Das tentativas de sorvê-la: uma espécie de abismo temporal entre
o esquecimento e a dúvida. Descreve-se sua topografia como uma ilusão demolida
ou um desejo em silêncio. É só vento, é tudo coisa vã em movimento frívolo. A
terra alta é para onde se elevam os olhos sem poder chegar.
Ainda que vasta, a floresta tem medidas: árvore, pedra, punhado de
terra e gota d'água. Uma capa pesada do céu, quando este aparecia, plasmava
acima da floresta, até que desabou das alturas: branca e amorfa. Forçosamente
abrigou-se apesar da resistência dos lagos, depressões, aclives. A vista em
mergulho tornou-se rasa, brecada - uma parede. Não lhe restaram fendas. Uma
refração pálida agarrou-se ali tal como uma poeira antiga - testemunha muda e
inerte, apenas ocupando o que não era seu. E inundará a floresta, tão logo o
sol toque o topo das montanhas. Enquanto isso, o que se conformou foi um relevo
interrompido de brancos pois um anacronismo artificial sugou-lhe todo o verde.
Ele agora cabe evaporado em um livro.
Nesta latitude, não há mudança de estação. Tudo que está ali tem
uma relação de ser com o lugar, embora impermanente. As andanças em suas
planícies contrastantes são intermináveis, parecem deslizantes. Seus caminhos
afastam-se entre si e enlarguecem propositadamente para desencadear vertigens:
quanto mais se anda, mais se anda. Avistam-se formas decepadas, como se dedos
gigantes houvessem lhes retirado a estabilidade da forma geometrizada – a sua
origem contida. Porões recobertos, abismos, pequenas cavernas, ondulações,
planos abruptos, curvas íngrimes, retas angulosas... O tempo talhou desgastes
nessas paisagens: lhes sobraram veios e um horizonte. Errante e movediço, vibra
com o deslocamento.
Dos procedimentos de invenção
São paisagens inventadas o que Laura Gorski fabula em “Arquipélago
dos lugares imaginários”. Uma suspensão das dimensões (profundidade, largura,
altura e tempo), que afivelam o espaço ao conhecimento humano, e o transcorrer
de um tempo outro, nessas paisagens, possibilitam que se explore com o corpo a
provisoriedade de não estar aqui.
Habita esses lugares uma sensação de não pertencimento geográfico.
Mapas e ilustrações fictícios enriquecem seus tópicos espaciais. É como estar
em presença de uma cultura avessa. Tende-se a imaginar os modos de vida, as
palavras e mesmo os trajetos para se chegar até lá. Mas a realidade é distinta,
pois há imprevistos que desestruturam as propriedades antes intuídas. Laura Gorski
aciona esses procedimentos de ver: o artifício da paisagem é ao mesmo tempo
passível de conhecer e perturbador em suas aparições pictóricas e mesmo
literárias. A paisagem dá-se como uma fricção de muitas certezas: visíveis,
ausentes, imaginárias, reais.
Nessa múltipla condição, a artista atua instituindo brechas por
entre as categorias artísticas, ao que o crítico Raymond Bellour definiu como
“passagens, corolários que cruzam sem recobrir inteiramente os universais da
imagem”. Os processos de Laura Gorski territorializam-se entre os recursos de
desenho, vídeo e literatura, entre a linguagem escultural, os ambientes
instalativos, a pintura, numa hibridização de poéticas com configurações que
não se querem definitivas. Por contrastes e oscilações entre as práticas
artísticas, Laura conjuga noções de paisagem - ou o que se pode entender como
uma construção proveniente de uma técnica, de um olhar - formulando
características de um lugar/espaço, para então abarcá-los e torná-los
visibilidade ao desfrute.
A paisagem como invenção
Em “Lufadas de tempo” (2012), a artista registra em ritmo
desacelerado o embate (ou fluxo) quase pausado entre uma montanha e a névoa que
lhe cobre e desvela. O vídeo testemunha esse movimento lento como o único
índice que aponta para o passar do tempo na paisagem. “Interstício” (2012/2013)
é um livro desfolhado, suas páginas migraram para as paredes e a sequência
visual se dá com o deslocamento no espaço expositivo. A artista apropriou-se
das fotografias do Parque Nacional Šumava, situado na República Tcheca, com
intervenções com guache em cor branca e, assim, redesenhou suas paisagens. Sete
telas de horizontes cambiantes ocorrem na instalação “Paisagem provisória” (2013).
A artista reestrutura o espaço da galeria, ocupando-o com elementos de uma
arquitetura alegórica, conformando outras escalas entre corpo e paisagens. São
linhas que formulam essas “esculturas-desenho”. Ao que parece, Laura é como o
colecionador de areia, descrito por Italo Calvino: viaja, recolhe um tanto dos
lugares que explora, para no retorno apresentar sua coleção de grãos: paisagens
de origem insondável, geografias que carrega consigo, com suas granulosidades e
instabilidades perceptíveis. Para estar diante delas, é preciso resistir a
ausência de fins, aos arremates de histórias, aos horizontes que não levam a
lugar algum.
Galciani Neves
O título da exposição de Laura Gorski foi livremente inspirado no
ensaio (1981) de Italo Calvino sobre o livro “Dicionário de lugares imaginários”,
de Alberto Manguel e Gianni Guadalupi: uma espécie de enciclopédia, com
verbetes de lugares fictícios.